06/01/2015
MANOEL DE BARROS
O menino que carregava água na peneira.
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos
Manoel de Barros
Sem título
I
nas minhas mãos sinto
o que não tenho
10 de Fevereiro de 2006
*
II
o raio de luz estilhaça o espaço
do meu silêncio
11 de Fevereiro de 2006
*
III
no fim do tempo as cores belas do poente
12 de Fevereiro de 2006
*
IV
as cidades ocupam o lugar dos campos abandonados
mas é neles que me revejo
17 de Fevereiro de 2006
*
V
subindo a montanha do tempo descubro
as mãos vazias de nada
19 de Fevereiro de 2006
18/10/2014
ANTÓNIO RAMOS ROSA
Esta é a hora. Mas nunca é a hora.
Só quando os braços se entrelaçam e o vermelho ascende
entre a folhagem. Há uma clareira
metade verde metade branca. E os nomes que se dizem
são felizes em consonância com as folhas.
Não é a hora mas é a hora, mas a hora é esta.
Que poderemos fazer? Um sopro de sílabas
de água ou de um fogo azul pode acender a página
e iluminar o espaço da morada.
A palavra aleatória virá ou não da nascente
mas será sóbria e atenta à nudez da existência
para além da sua opacidade. E será tão frágil
como a teia de espuma sobre um rosto de areia.
29/12/2013
Pequenas coisas
Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
Albano Martins
Escrito a vermelho
Campo das Letras
1999
1ª edição
07/11/2013
7 novembre 1913 : naissance d´Albert Camus à Mandovi – Algérie
… des petites roses tardives du cloître de Santa Maria Novella aux femmes de ce dimanche matin à Florence, les seins libres dans les robes légères et les lèvres humides. (…) Dans ces fleurs comme dans ces femmes, il y avait une opulence généreuse et je ne voyais pas que désirer les unes différât beaucoup de convoiter les autres. Le même cœur pur y suffisait.
Albert Camus, in
Noces (Le Désert)
29/08/2013
VEJO COISAS MUITO BONITAS
Vejo coisas muito bonitas por aí quando olho
À volta nos intervalos do tempo que me dá
De folga a atenção que depositam em mim
O mínimo gesto uma interjeição o silêncio
O bater do coração o resfolegar o protesto
No meio do tempo que vai a mais de metade
Acredito que as coisas bonitas que vejo por aí
São mesmo a verdade que invento e assim
Não me podem causar desalento nem sequer
No dia em que as achar as coisas mais ruins
2/5/2007
À volta nos intervalos do tempo que me dá
De folga a atenção que depositam em mim
O mínimo gesto uma interjeição o silêncio
O bater do coração o resfolegar o protesto
No meio do tempo que vai a mais de metade
Acredito que as coisas bonitas que vejo por aí
São mesmo a verdade que invento e assim
Não me podem causar desalento nem sequer
No dia em que as achar as coisas mais ruins
2/5/2007
19/06/2013
AS EVIDÊNCIAS - XIII
Quando me encontro sempre sem poesia
do ritmo ouvindo o cadenciar perfeito
em que as palavras passam como um dia
que é fluído e pálido, gelado e estreito,
sempre uma voz, que eu antes não ouvia,
me preenche o espaço entre o destino e o leito
de fogo e de cristal em que me deito
na música sem dor nem alegria.
Alguém que eu fui ou não cheguei a ser,
que alguém não teve tempo de viver
na ondulação do transitório acaso,
é por acaso que em mim próprio escuto,
qual do vazio ocasional refuto
a vacuidade inane do seu vaso.
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