30/10/2007

TENTAÇÕES DO APOCALIPSE

Posted by PicasaDebe Hale

Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assasssina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isto que fizemos filhos.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na turpitude
de existir-se, ao menos possa haver
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a Criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)

21/5/1964
[In “Poesia III” – “Brasil” – selecção de poemas resultante da leitura de Julho de 2007 em Cuba. (18). Este é “poema seguinte” referido na nota que o autor escreveu para o que antes publiquei: “O poema reflecte, como o seguinte, o estado de espírito de quem vivera a atmosfera de liberdade das Presidências Kubitschek, Jânio e Goulart, em face do ambiente de perseguição que então se instalou no país.”]

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