24/07/2009

TEXTO-AL

O Texto-Al, Grupo Literário do Algarve, é um grupo informal de pessoas unidas pelo interesse e paixão pela literatura.

20/07/2009

"AS EVIDÊNCIAS" - XI


4

Um 11º soneto.

XI

Marinha pousa a névoa iluminada,
e dentro dela os pássaros cantando
são crepitar das ondas doce e brando
na fímbria oculta e só adivinhada.

Verdes ao longe os montes na dourada
encosta pelos tempos deslisando,
suspensos pairam no frescor de quando
eram da sombra a forma congelada.

Ao pé de mim respiras. No teu seio,
como nas grutas fundas e sombrias
os animais pintados adormecem,

sereno seca um amoroso veio.
Um após outro hão-de secar-se os dias
na teia ténue que das eras tecem.

Jorge de Sena

1-3-1954 [Confirma-se o desfasamento devendo a referência feita, no dia 4 de Março de 1954, ao 11º soneto ser destinada aquele que na Poesia 1 surgirá a seguir com o nº 12.]

16/07/2009

"AS EVIDÊNCIAS" - X


1 de Março

Esta manhã, um 10º soneto. Suponho que apenas faltam mais dois.
Fui ao aeroporto despedir-me do Couvreur, que ia na viagem que seria para mim. Como o avião vinha atrasado, aproveitei para procurar o Zé que há tanto tempo não via. E li-lhe os dez sonetos, de que ele gostou, achando que a “coisa” ainda vai a meio.(…)

X

Rígidos seios de redondas, brancas,
frágeis e frescas inserções macias,
cinturas, coxas rodeando as ancas
em que se esconde o corredor dos dias;

torsos de finas, penugentas, frias,
enxutas linhas que nos rins se prendem,
sexos, testículos, que inertes pendem,
de hirsutas liras, longas e vazias

da crepitante música tangida,
húmida e tersa, na sangrenta lida
que a inflada ponta penetrante trila;

dedos e nádegas, e pernas, dentes.
Assim, no jeito infiel de adolescentes,
a carne espera, incerta, mas tranquila.

Jorge de Sena

27-2-54 [O soneto a que se refere Sena no “Diário” deve ser, na verdade, o 11º publicado em “Poesia I”].

12/07/2009

"AS EVIDÊNCIAS" - IX


27

Esta manhã, um 9º soneto, obsceníssimo, mas demasiado formal, por demasiado “descritivo”. No entanto, é de certo modo o que eu queria fazer no sentido da violência. O Casais, a quem no café (a nossa “tertúlia” é este “tête-à-tête”, em que ele se torna muito mais o delicado que não quer, prudentemente, ser) o mostrei e ao de ontem, sentiu isso mesmo, porque disse: “Não gosto que se fale cerebralmente dessas coisas” (tomando cerebral pelo impressionismo descritivo). Vai proferir uma conferência sobre o Pessoa no Inst. Britânico; e ao Estorninho disse que para as influências inglesas era eu e não ele. Gostou muito do outro soneto. E achou, como eu acho, notável o artigo que o Lemos me mandou, e que vou rever para enviar ao C. Barreto.

IX

Com a mão brincando sem virtude ou vício,
o sexo antes do sexo pressentido,
conhecem-se as crianças, que, dormindo,
irão morrendo em sexo e juventude.

Da vã cidade o pálido bulício
em sonhos se dilui. Sombras sorrindo
afastam-se, crianças conduzindo
à virgindade ansiosa, austera e rude.

Pelas esquinas, no limiar da terra,
lá onde os sóis os prados ainda rasam
e as ervas vibram num tremor obscuro,

nocturno o espaço os milhares de olhos cerra,
sombras serão as crianças que se atrasam,
e a Graça, alheada, é o gesto ainda futuro.

Jorge de Sena

26-2-1954

10/07/2009

TORGA VISTO POR SENA (um episódio)


A propósito desta magnífica posta do Pedro Rolo Duarte ficou a bailar-me na memória uma leitura recente, muito interessante, e pouco simpática, na qual Jorge de Sena se refere a Torga. Pode ser lida nos “Diários” de Sena, no dia 24 de Fevereiro de 1954. Reza assim:

“Encontrei-me com o Guilherme Filipe, para ele me pagar a palestra de ontem. Conversámos um pouco com o Casais que depois saiu. Perguntei-lhe então pela mulher, que sei pior do juízo. Abriu-se então. A última crise começou nas vésperas da partida para o “Cruzeiro dos três continentes” (aquele cruzeiro em que certos excursionistas, segundo me contou o Bordalo, julgaram que as ruínas da Acrópole eram dos terramotos recentes … das ilhas gregas …). Numa crise de dinheiro o Guilherme vendeu uns quadros de que gostava muito, sem que ela, desgostosa por essa solução quando ele não tinha outra, dissesse uma palavra. Chega o Torga, o grande raiano dos arrabaldes de Vila Real de Trás-os-Montes, com um amigo. Também ia ao cruzeiro. E, com um gesto indicativo da memória aquilina que se “deve” supor que ele tem, pergunta: - Falta ali um quadro. Onde está aquele quadro de que eu gosto tanto? - Olhe, respondera o Filipe, precisei de dinheiro e vendi-o. – E por quanto? – Por 3 contos. – E a senhora consentiu? – perguntou o Torga à mulher do Filipe. E este, logo: - Não só consentiu, como não me disse ainda uma palavra a esse respeito. E o Torga, magnífico e magnânimo, abraçando o Filipe: - Ah que você ainda é mais desgraçado do que eu supunha. – E levantou-se para sair, depois de lamentar o mau agouro com que iniciara o “seu” cruzeiro e o não poder dar ele, em vez de ir na viagem, o dinheiro que o Filipe precisara … agora … - Então não janta? – perguntava triste. – Não, minha Senhora, não, que o que acontece aos meus amigos é como se me acontecesse a mim. – E durante a viagem fez sentir à senhora quanto era indigna esposa do pintor (coitado!) G. Filipe. Que grandecíssimo filho … ainda por cima sem sombra de delicadeza moral." (…)

09/07/2009

MARINA CEDRO

Amar sin embargo amar

amar
el amor
sabe
madura
se encuentra
la mujer
como tus curvas
masculinas
mis piernas
acariciar
me dejo
las mías
para encontrar
echar tus manos
me dejo
sin tu presencia
el silencio
cruje
sentada
tu llegada
espero
te une a mi
la historia
sin embargo
la historia
te une a mi
espero
tu llegada
sentada
cruje
el silencio
sin tu presencia
me dejo
echar tus manos
para encontrar
las mías
me dejo
acariciar
mis piernas
masculinas
como tus curvas
la mujer
se encuentra
madura
sabe
el amor
amar
.
Poemario Todas las que soy, 2003

08/07/2009

"AS EVIDÊNCIAS" - VIII


26

Um 8º soneto (que deverá ocupar o lugar do 7º), um dos mais belos senão o mais belo – e que me emocionou tanto, que julguei que ia escrever logo outro. Mas era só emoção dele.

VIII

Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa …
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

Jorge de Sena

22-2-1954

06/07/2009

O QUE ME PRENDE OS SENTIDOS À BELEZA


O que me prende os sentidos à beleza
é o presente dela, fulgor que me cega
é futuro que me destrói, ter a certeza
que ao certo nela nunca ninguém pega

Resvalam-me as mãos e hesito tocá-la
a beleza impregnada dos meus medos
é memória de sofrimentos por tomá-la
ai a pura beleza cega em seus enredos

É ela que me prende à vida. O encanto
se torna desejo, espera sábia do tempo
que se revê ao espelho, o breve pranto

que ecoa sob a luz refulgente, a beleza
é um fogo que me consome por dentro
é tudo, nada, uma insustentável leveza

30 de Junho de 2009

05/07/2009

SONETO

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira

In “Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa”
de Eugénio de Andrade

03/07/2009

"AS EVIDÊNCIAS" - VII


22

(…) Trabalhei no serviço o dia inteiro e, à tarde, escrevi em três horas de expectativa tenteada, um 7º soneto, que me parece o penúltimo das “evidências”.

25

Dei os sete sonetos (até agora) ao Casais (que já ouvira os 3 primeiros) a ler. Achou de “primeiríssima ordem” os 5 primeiros – com a reserva do final violento do 3º, que o choca -, menos bom o 6º, e o 7º ainda que muito bom, pareceu-lhe desviado da linha dos outros.

VII

Atentos sobre a terra ao que sem nós
connosco é o movimento em que levados
vamos criando qual somos criados
na recessão dos mundos fugitivos,

é nossa a luz que vemos, nossa a voz
com que a dizemos de astros apagados,
é nossa a carne com que estamos vivos,
e é dela a só ternura que abraçados

connosco esquece a distinção das cousas.
Humano escutarás, único vais
na numerosa multidão esquecida.

Ímpio de ti, se juras e não ousas
que teus vivos desejos se ergam tais
como em ti próprio aguarda uma outra vida.

Jorge de Sena

22-2-1954

02/07/2009

CASIMIRO DE BRITO

DO POEMA

O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes —

o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.

Canto Adolescente, 1961

01/07/2009

AINDA VALE A PENA

Ainda vale a pena escrever aos professores
que formaram o meu carácter passou muito
tempo, para quê escrever cartas a ausentes
de destinatário. É triste os que amei calado
nunca terem sabido do meu contentamento
por ser assim pouco dado a agradecimentos
escusas e pedidos de favores, salamaleques
e outros trejeitos que o tempo me ensinou
serem tão necessários para não morrermos
antes do tempo exacto da nossa morte certa
anunciada desde o tempo feliz das festas
inocentes quando uma caixa de cartão sorria
nas minhas mãos e nela passeava os meus
sonhos esquecidos. Nada volta ao princípio
a não ser quando por escrever restam cartas
abandonadas sem ninguém nelas reflectido.

3/5/2009