31/08/2007

SABEDORIA DE CALÍGULA

Posted by PicasaImagem daqui

Mandei-o descascar batatas,
respondeu-me que os astros auguravam bom tempo.
Decididamente era verdade
que o imperador fizera o seu cavalo cônsul.

9/3/1954

Jorge de Sena
[In “Poesia III” – “Portugal” – selecção de poemas resultante da leitura de Julho de 2007 em Cuba. (2)]

27/08/2007

ALBERTO DE LACERDA

Posted by PicasaDarryl Baird

Em Julho de 1951 os “Cadernos de Poesia” (Fascículo Oito * Segunda Série) editaram “Poemas”, de Alberto de Lacerda, um grande poeta português esquecido, que domingo passado morreu em Londres. Ao tempo os “Cadernos de Poesia” eram dirigidos por Jorge de Sena, José-Augusto França, José Blanc de Portugal e Ruy Cinatti.

Aqui deixo, em sua homenagem, dois poemas retirados dessa mesma publicação, a partir da sua reprodução fac-similada, dirigida por Luís Adriano Carlos e Joana Matos Frias, editada pela “Campo das Letras”.

VENTO

Que a minha vida fosse para os humanos
como o vento que passa e que se esquece.


EU VOU PARTIR

Eu vou partir. Tenho medo
do mistério que há no mar
envolvendo o meu navio.
Tenho frio.

Eu vou partir. E vou só.
Solicitude é meu brasão.
Tenho medo, meu amigo,
vem comigo.

Aquela luz que eu amava
não virá dizer-me adeus.
Como tudo, numa hora,
foi-se embora.

Sou luz futura. Quimera
interior à adolescência
do meu muito imaginar
sobre o mar.

Eu vou partir. Agitai
como bênção derradeira,
anjos do adeus, imensos
níveos lenços!

Alberto de Lacerda

[Estes dois poemas foram escritos para o livro “Ponte Suspensa”. A data desse livro é Outubro de 1946.]

Eduardo Pitta em Da Literatura


26/08/2007

DUPLA GLOSA

Posted by PicasaRuy Cinatti

Para o Ruy Cinatti,
em Timor, pelo seu aniversário, em 1952

“Não passam, Poeta, os anos sobre ti”
- eis o que em tempos uma vez te disse.

Não é bem a verdade; passam sobre ti
como por sobre os seres que perecem.
Apenas sempre tu soubeste como
se vive no intervalo entre os instantes.

Os anos passam; mas, desta passagem,
a permanente essência em nós se cumpre,
que para testemunho só nascemos.

Mas de que falas tu? De ti? Do mundo?
Ou do intervalo em que te aceitas outro,
precisamente quando mais te julgam tu?

A pouco e pouco, nascerás de tudo.
Tu próprio, todavia, não disseste que
“anoitecendo a vida recomeça”?

3/3/1952

Uma nota a “Dupla Glosa”

É Jorge de Sena que, em Julho de 1977, mesmo no fim da vida, no prefácio de “Poesia III” escreve: “ …Poesia III compõe-se de “Peregrinatio ad loca infecta”, Exorcismos, o poema “Camões na Ilha de Moçambique”, Conheço o sal … e outros poemas, e a sequência sobre esta praia … – oito meditações à beira do pacífico, acrescidos de três poemas inéditos e de um inédito segmento de um outro.”

“Peregrinatio …” foi publicada em 1969 mas na reedição inserta em “Poesia III” alguns poemas são acompanhados de notas – escritas em 1977 – algumas das quais valem bem a pena serem divulgadas. Foi o que não fiz logo ao publicar o poema “Dupla Glosa” e que agora corrijo transcrevendo a nota que Sena escreveu para o acompanhar:

“O poema refere-se ao que, com este citado mesmo primeiro verso, faz parte do livro Pedra Filosofal, coligido em Poesia I, aonde o poeta a quem era dirigido o poema, e meu amigo dos maiores de há quase quarenta anos, não era indicado, como aqui, em dedicatória. Não é excessivo repetir, uma vez mais, que Cinatti é, mesmo em muitos dos poemas que agora distribui pelas ruas de Lisboa, varrido pela dor mortal que o feriu com a catástrofe de Timor, um dos grandes poetas portugueses deste século, em minha opinião; e o futuro o dirá, ao apear alguns que por aí andam pintados de génios pelos seus fiéis servidores ou pelos servidores de a quem servem. Di-lo-á também, ao reconhecer nele uma das consciências verdadeiras deste nosso tempo em que nunca se imaginou uma tal exibição de falta desse atributo humano. Consciência desenfreada, mas uma, além do mais, das raras – a não ser no povo – consciências altruisticamente sofredoras que há hoje em Portugal. O autor destas linhas, ao ler este poema de 1952, treme do que parece que era profecia, e de facto “retrato” passado e futuro.” [Acrescente-se que, como decorre desta nota, datada de 1977, Cinatty sobreviveu cerca de dez anos a Jorge de Sena.]



Jorge de Sena

[In “Poesia III” – “Portugal” – selecção de poemas resultante da leitura de Julho de 2007 em Cuba. (1)]

25/08/2007

NÃO OMITO

Posted by PicasaDouglas Prince

Não omito nada do meu gostar
nem o sobressalto de descobrir um dia
que não queria nada do que quis.
Ofereço o tempo futuro todo
à descoberta da arte de transformar
amando o desconhecido ou quase que é
afinal o que é amar.

24/2/1981

(Poema publicado, sem data, em “Ir pela Sua Mão” – 2003.)

24/08/2007

SINTO

Posted by PicasaPamela Creevey

Não me sinto mal agora sinto
a minha pele quente às vezes sinto
um nervo duro e solto do resto mais nada sinto

Não sinto a gola apertada nem o corpo sinto
apertado no estreito istmo onde me deito sinto
um corpo terno que me procura mais nada sinto.

24/2/1981

(Poema publicado, sem data, em “Ir pela Sua Mão” – 2003.)

22/08/2007

EXPERIÊNCIA - IV

Posted by PicasaBodil Frendberg - Swedish, b.1974

“Tu és em cada gesto todos os teus gestos
E neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz
Deixa-me estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na mesma forma de ruga
Perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
Prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
Deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
E eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
Sou isto é certo mas sei que tu estás aqui.”

In “Tu estás aqui” – Ruy Belo


Se um dia eu escrevesse um poema simples
ainda denso e cheio de paz
ficaria leve como uma pena ao vento
que volteia dá mil pinos sem partir e na cabeça
criar-se-ia um silêncio raro, crente na exactidão das coisas.
Como os ruídos domésticos fazem o à-vontade
deixaria então partir esta dor no temporal direito
que quase me tolhe o braço
e com o espaço por ela deixado
faria na cabeça um barco enorme e vazio
onde tomando o lugar do tripulante solitário
rumaria em direcção àquela cova aberta à mão
que serviu de coberta à longa tarde dos quentes dias
no tempo do alento que aos poucos se apaga
e às vezes dá de caras com o preto da descrença.
Se do que fazemos nada sobrar além do que fazemos
se nada sobrar do diverso coro das nossas vozes e do falsete
do cantar grosso das canções que entoas que nunca
o esquecimento se arvore em estafeta entre uma e outra das nossas bocas.

28/1/1981

[Este é o poema original que deu origem a dois outros, um deles, sob o título “Sós” – publicado no livro “Ir Pela Sua Mão”, e o outro, se bem me lembro, publicado no Absorto. Foi escrito a lápis e o manuscrito apresenta poucas emendas.]

20/08/2007

EXPERIÊNCIA III

Posted by PicasaEric Fredine - Canadian, b.1964

Dói às vezes partilhar o comum dos gestos
da vida e omitir a sua parte nova e agreste
julgar no dia claro deste Janeiro quente
e seco os passos de viver assim docemente

Crispa a pele seca no corpo o vento em riste
e aceitar o cansaço do ventre a olhar o já visto
receando nós a própria dor do tempo carregado
que dela nos desfazemos amando o corpo amado
mesmo que surja uma palavra a mais ou menos
naquele gemido que lemos na memória omissa:
que cor têm os cabelos ondeando no beiral
do tempo quando se abrem os braços e se grita?

Paremos, soltemos o nosso passo à desfilada
pensemos, prendamos o braço ao braço que abraçamos
experimentemos ouvir assim as horas na torre
surpreender o esvoaçar da cegonha que observámos
contar com um olhar os pardais no berço da noite
seguir a linha quebrada do remo fendendo a ria
ou os pontos mortiços das luzes lá no cimo da colina

A respiração sustém-se no momento do passo dado
e já nada nos segue a não ser o nosso próprio riso
eco repetido no chão duro e cego da verdade.

21/1/1981

19/08/2007

CANCIÓN ANTIGUA A CHE GUEVARA

“Sans peur et sans reproche …”

-Dónde estás, caballero Bayardo,
caballero sin miedo y sin tacha?
- En el viento, señora, en la racha
que aciclona la llma en que ardo.
- Dónde estás, caballero gallardo,
caballero sin tacha y sin miedo?
- En la flor que a mi vida concedo:
en el cardo, señora, en el cardo.
- Dónde estás, caballero seguro,
caballero del cierto destino?
- Con la espada aclarando camino
al futuro, señora, al futuro.
- Dónde estás, caballero el más puro,
caballero el mejor caballero?
- Encendiendo el hachón guerrillero
en lo oscuro, señora, en lo oscuro.
- Donde estás, caballero el más fuerte,
caballero del alba encendida?
- En la sangre, en el polvo, en la herida,
en la muerte, señora, en la muerte.
- Dónde estás, caballero ya inerte,
caballero ya inmóvil y andante?
- En aquel que haga suyo mi guante
y mi suerte, señora, mi suerte.
- Dónde estás, caballero de gloria,
caballero entre tantos primero?
- Hecho saga en la muerte que muero:
hecho historia, señora, hecho historia.

Noviembre 8, 1967

Mirta Aguirre

17/08/2007

NÃO QUERO AMAR SEM SER AMADO

Posted by PicasaPamela Creevey

Não não queria escrever assim
marcando palavras na palavra
ritual que assinala o querer amar
não descendo do alto da ilusão
de ser amado de igual a igual.

Não não queria marcar posição
na eterna luta por afirmar sexo
contra sexo num lugar cimeiro
único, transcendente e vencedor,
queria ser amado sem mexer.

Não não queria procurar alguém
antes ser procurado e devassado
ao último lugar do corpo nu
sem outro não a não ser nada
recusar ao amado corpo amante.

Não não queria degrau de prazer
sem num instante ceder ao outro,
para que nele firmasse o seu ser
todo, um grito único de liberdade:
não quero amar sem ser amado.

26/12/1980

CUSTA


Connie Imboden

Custa muito ver o rosto crispado
desfeito, lágrima contida convulsa,
na ponta da palavra nova e agreste
desespero de ver-se além do outro.

Custo julgar e mais julgar-se
ultrapassar o fosso da diferença
cair em si, destapar a fossa
das palavras não ditas, ocultas.

Não acusar as mágoas custa,
mas deixá-las cair mais além
morder o desespero do não feito
e guardá-lo, só para si, é muito.

25/12/1980

16/08/2007

PENSO


Alan Kupchick

Vi adormecer o sol abaixo das nuvens
mar límpido e céu vermelho ligeiro
e desse berço o cheiro intenso me cegou.
Vi no dia sagrado familiares de Mercedes
passear o seu orgulho e logo atrás
cambaleando de pernas arqueadas
homens que o sol não aquece
e a queda na cidade tornou assim tão
perdidos dos seus e suspensos da memória:
homens do campo que o campo esqueceu.

Reconheci pedintes agonizando à mesa
da ceia que o Cardeal não reconheceu
e à cabeceira do meu braço morrerem
nas palavras do momento ou na voragem
da idade alguns que me soletraram a palavra
vida. Esses os mais queridos que sempre
o são apesar da distância e do esquecimento
azulado da lembrança. Esqueci o que vi
no momento de ver a quem escrevia
porque vi no Natal tanta mágoa que nele
imaginei não mais te ver a ti.
Hoje agora aqui neste sussurro pensativo
não quero mais nada do que um sossego
de sono esperado, manso, nocturno e doce,
não quero mais nada que de mim saia
senão meu corpo apertado na tua mão quente.

25/12/1980

[Uma tentativa de poema de Natal, certamente, escrito em Faro. Publico-o pelo último verso que me deve ter suscitado aquela satisfação que Ruy Belo descreve em dois versos do seu poema Requiem por Salvador Allende: “Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água/sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo”. Por esta época já tinha lido, além de Sena, Ruy Belo como pude confirmar pela epígrafe que surge num próximo poema.]

13/08/2007

MOMENTO


Whitney Hubbs*

Há momentos da vida
que desejamos não ser
seres indesejados e densos.
Jogamos o tempo fora
na crença ingénua de
frustrar o círculo dos dias
a infidelidades certas
que assobiam ao coração
e o cansam de lutas
dolentes e o mutilam.
De querermos permanecer
sós nós próprios, desertos,
agarram-se mãos amigas
e nelas trespassam negros
dias fictícios e únicos.
Dói-me o coração agora.
Apetecia-me puxar um fio
a um outro lado preso
e suspirar um alívio
adoçado de leve beijo
de irmão não pedido
espalmado na palma
suave de alguma mão
que se tivera estendido.
Há momentos da vida
que nos desejamos livres
frios e calculistas,
planeados e ordeiros
suaves cães de trela
pacíficos e passeeiros.
Que desejamos não ser
seres indesejados e densos.

27/11/1980

[Este é o primeiro de uma série de poemas, dos quais alguns são mais longos do que o habitual, escritos, na sequência dos anteriores, entre os finais de Novembro de 1980 e de Janeiro de 1981. Este poema foi manuscrito, a lápis, em duas páginas de bloco, com três variantes e a versão final o que é raro pois, em regra, só encontrei as versões finais manuscritas e praticamente limpas de emendas. Quer dizer que os escrevi, seja qual for a qualidade do produto final, com uma evidente intenção poética.]

* Self-Portrait, Trying Not To Think Too Much About Things, 2005

11/08/2007

MIGUEL TORGA


Miguel Torga
S. Martinho de Anta (12.08.1907) – Coimbra (17.01.1995)

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

S. Martinho de Anta, 30 de Abril de 1937

Miguel Torga

[In Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa, de Eugénio de Andrade. Antecipando, por um dia, o centenário do seu nascimento.]

09/08/2007

FLORENÇA VISTA DE SAN MINIATO AL MONTE

Posted by PicasaChiesa di San Miniato al Monte

(…)

Na esplanada sobre o vale, sento-me
ao silêncio do entardecer, vendo
Florença, com as suas cúpulas e torres, que escurece
austera e refinada: o Duomo, o Bargello,
Santa Croce, os Uffizi, o Palazzo Vecchio
a ponte antiga, o Campanile, tudo – e os montes
e os ciprestes, e o céu pálido, a lua:
um momento incrível de fé na grandeza humana,
que não existe já mas paira ali suspenso,
ecoa pelas praças e nos pátios,
um misto de rigor e de volúpia, dignidade
das coisas e das formas, que o cardeal,
aqui do alto, e na margem oposta,
velou dormindo, e vela, virginal.

10/5/1969

[Excerto do poema Florença Vista de San Miniato al Monte, de Jorge de Sena, in “Notas de Regresso à Europa” - Poesia III - que li, na íntegra e cuidadosamente, na visita a Cuba, tendo assinalado um conjunto de poemas que, com tempo, aqui irei publicando. Este vai para a Helena.]

PALAVRA

Posted by PicasaAnne Arden McDonald

Amor amizade lua
salto loucura morte
o gesto que se não amua
aquela palavra tão doce

Agora pela vez primeira
apeteceu-me dizer aquela
palavra mágica de cera
que nos ensinaram a esquecer

Amo amor amores
sei de cor e vou dizê-la
sobem rios de rumores
em direcção ao norte.

25/11/1980

06/08/2007

RISCO

Posted by PicasaBill Kane

Arrisco em ti cansaço
juízo inteiro, o ser
igual, repetir o fracasso.

25/11/1980

[Transcrevo do manuscrito o segundo poema, escrito neste mesmo dia, que, ao contrário do anterior, alterei para publicação em “Ir pela sua mão” – 2003 - .]

04/08/2007

DIA

Posted by PicasaWhitney Hubbs

Gostei daquela calma
atenta ao corpo vivo
e lambi trinta vezes
o mal pelas raízes.

25/11/1980

(Transcrevo directamente da versão manuscrita. Neste dia, numa mesma folha, de bloco, escrevi, além deste, mais dois poemas. Este e o que se seguirá foram publicados, sem data, no livro “Ir pela sua mão”, edição de 2003.