30/03/2008

O ROSTO (IV)


O círculo da minha infância apertado
nas mãos que me amam
e ao fim do tempo passado ver morrer
os rostos que me clamam

O círculo da minha infância estreitado
no istmo donde me chamam
vozes vãs em esperas, enganos e medos
os rostos que me amam

9/12/2007

[25 Poemas. Selecção de poemas escritos, a lápis, nas páginas do livro “Toda a Poesia”, de Ferreira Gullar, 15ª edição, José Olympio, Editora.]

29/03/2008

O ROSTO (III)

Sofhie Thouverin

Sinto-o como um frémito,
a impossível arte
de apagar o teu rosto,
alimento o diálogo
de longe,
não o quero morto.

Me constranjo como antes,
vejo
o lugar vazio silente,
o futuro
ausente,
não o quero morto.

Sinto desprezo por errar,
sentimento
do que sinto,
não te digo
mas o teu rosto,
não o quero morto.

8/12/2007

[25 Poemas. Selecção de poemas escritos, a lápis, nas páginas do livro “Toda a Poesia”, de Ferreira Gullar, 15ª edição, José Olympio, Editora.]

28/03/2008

O ROSTO (II)


“Sobre a poeira dos abraços
construo meu rosto”

A FALA – Ferreira Gullar

Na poeira vinda
de longe
o rosto se expõe
admirável arte
de encantar

Construo meu rosto
a admirar
o teu rosto
sobre a poeira
dos abraços

8/12/2007

[25 Poemas. Selecção de poemas escritos, a lápis, nas páginas do livro “Toda a Poesia”, de Ferreira Gullar, 15ª edição, José Olympio, Editora.]

23/03/2008

LAST BLUES, TO BE READ SOME DAY


Referi, no post A LUTA DOS TRABALHADORES: AQUI E AGORA, a obra poética principal de Cesare PaveseTrabalhar Cansa”. Pavese só foi, no entanto, reconhecido como poeta de primeira grandeza com a publicação, após a sua morte, por suicídio aos 42 anos, de “Virá a Morte e Terá os teus Olhos”, obra constituída por poemas curtos, inspirados no seu amor infeliz pela actriz norte americana Constance Dowling e a ela dedicados.

Aqui deixo o último poema de Pavese, "Last blues, to be read some day", escrito em inglês, como se fora um epitáfio:

Foi só um flirt
e sabias, claro –
alguém foi ferido
há muito tempo.

Mas nada mudou
o tempo passou –
um dia chegaste
um dia morrerás.

Alguém morreu
há muito tempo –
alguém que queria
mas não sabia.

11 de Abril de 1950

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T was only a flirt
you sure did know –
some one was hurt
long time ago.

All is the same
time has gone by –
some day you came
some day you’ll die.

Some one has died
long time ago –
some one who tried
but didn´t know.

11 April ‘50

[In Trabalhar Cansa, edição bilingue, Cotovia
Tradução de Carlos Leite]

21/03/2008

DIA MUNDIAL DA POESIA (II)


Trata-se de uma edição digital blingue, português/espanhol, da obra de Fernando Pessoa, de autoria de Sebastián Santisi, um extraordinário empreendimento individual para a divulgação da poesia de Fernando Pessoa no universo dos falantes da língua de Cervantes.

Aqui deixo, em português e espanhol, um dos poemas mais conhecidos de Fernando Pessoa,
O Mostrengo:

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar, E disse:
.
«Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
.
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
.
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
.
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
.
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
.
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

Fernando Pessoa in Mensagem
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El monstruo(*) que está en el fin del mar
En la noche de brea se yerguió a volar;
La rueda de la nave voló tres veces,
Voló tres veces chillando, Y dijo:
.
«¿Quién es el que osó entrar
En mis cavernas que no desvelo,
Mis techos negros del fin del mundo?»
Y el hombre del timón dijo, temblando:
.
«¡El-Rey(*) D. João Segundo!»
«¿De quién son las velas donde me rozo?
De quién son las quillas que veo y oigo?»
Dijo el monstruo, y rodó tres veces,
.
Tres veces rodó inmundo y grueso.
«¿Quién puede ver lo que sólo yo puedo,
Que moro donde nunca nadie me vio
Y escurro los miedos del mar sin fondo?»
.
Y el hombre del timón tembló, y dijo:
«¡El-Rey D. João Segundo!»
Tres veces del timón las manos erguió,
Tres veces al timón las reprendió,
.
Y dijo al final de temblar tres veces:
«Aqui al timón soy más de lo que yo:
Soy un pueblo que quiere el mar que es tuyo;
Y más que el monstruo, que mi alma le teme
.
Y rueda en las tinieblas del fin del mundo,
Manda la voluntad, que me ata al timón, ¡
De El-Rey D. João Segundo!»

Fernando Pessoa, in Mensagem

19/03/2008

BEIJO


Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no de abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mas beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.

19/5/1971
.
[In “Poesia III” – “Exorcismos - 1972”]

DIA MUNDIAL DA POESIA

17/03/2008

O ROSTO (I)


“detrás, detrás do amor,
ergue-se para a morte, o rosto.”

A FALA – Ferreira Gullar


O rosto adivinhado conforme os ângulos
Meu ideal de beleza, meu olhar inventado
O rosto que pressinto no vazio desconhecido
Mostrado como se fora visto e reconhecido
O rosto imaculado com as marcas do tempo
Impoluto misterioso sorridente e desabrido.

Ergue-se para a morte, o rosto detrás do amor

25/11/2007

[25 Poemas. Selecção de poemas escritos, a lápis, nas páginas do livro “Toda a Poesia”, de Ferreira Gullar, 15ª edição, José Olympio, Editora.]

16/03/2008

O QUE DORME EM MIM


O que dorme em mim não é o esquecimento
É a lembrança do céu azul e da terra quente
O que me desperta os sentidos não é o lamento
Dos anos de letargia que trago de adulto dentro
É o sonho incumprido de fazer da minha vida
Uma dádiva que por outros pudesse ser vivida

É a vida, a própria vida, que me leva de vencida!

25/11/2007

[25 Poemas. Selecção de poemas escritos, a lápis, nas páginas do livro “Toda a Poesia”, de Ferreira Gullar, 15ª edição, José Olympio, Editora.]

13/03/2008

DEIXA-TE ESTAR AÍ

Chris Dunker

Para a Raquel

Deixa-te estar aí. Não saias do teu lugar
E não fiques triste se te perderes
Deixa-te estar aí. Um tempo mais
Que não nos perderemos de ti

Deixa-te estar aí. Mesmo sem nos vermos
Ouviremos ao longe a tua voz
Deixa-te estar aí. Perdida ou achada
Com a tua fé sem ti seremos nós

Deixa-te estar aí. Nunca saímos
Do coração daqueles que gostam de nós
Deixa-te estar aí. Só mais um tempo
E acredita na verdade sempre

Deixa-te estar aí. Não saias do teu lugar
E se acaso saíres não te percas
Deixa-te estar aí. Se te perderes
Fica certa que te vamos encontrar.

12 de Março de 2008

10/03/2008

PRIMEIROS POEMAS

A Helena um dia, antes do Natal de 2007, enviou-me uma prenda muito especial. Fiquei sem fôlego de como lhe haveria de retribuir. Foi assim que nasceu a ideia de criar um livrinho com os primeiros poemas que escrevi com intencionalidade poética. Alguns deles constavam de um quase diário que mantive, durante bastante tempo, actualizado no início dos anos 80. A maior parte tinha-os perdido de vista até uns tempos atrás. Depois fui descobrindo manuscritos. Papéis soltos. Eliminei alguns, talvez de menos. No verão do ano passado publiquei-os com a etiqueta Primeiros Poemas no Caderno de Poesia.

Este último Natal a Isabel Espinheira criou um livro que é mais do que o suporte em papel para esses Primeiros Poemas, tardios (pois sou tardio em tudo), tendo-lhes acrescentado aguarelas que para ele foram criadas e um grafismo, ao que me dizem, feliz. Assim nasceu uma micro edição em homenagem a minha mulher Guida pois, além do mais, a maioria deles lhe foram dedicados nos primeiros meses do nosso encontro feliz.

Não pensava dar-lhe publicidade. Mas a Helena, na Linha de Cabotagem, deu-se ao trabalho, por gentileza e amizade, de publicar a imagem da capa e dois poemas, assim como a Maria do Rosário Fardilha, no Divas & Contrabaixos, ainda antes, com palavras que não esquecem, já lhe tinha feito referência.
O que nos vale, nos dias mais amargos, é a amizade e a ternura dos que nos fazem sentir próximos mesmo quando estão distantes.

08/03/2008

NA PRAÇA

Faro – A caminho da Sé

Na praça a penumbra
do fim da tarde
cheira à flor da laranjeira

Na praça a temperatura
amena navega
por entre paredes brancas

Na praça é tal o silêncio
e a placidez da gente
que nela oiço a voz do tempo


Faro, 1 de Março de 2008

05/03/2008

RECORDAÇÃO

Eu bem sei
Que rodo em muitas esferas
E não sei
Por onde me levas, poesia.
Quando vou,
E não encontro ninguém,
Tenho medo do que sei:
Um filho de sua mãe
E seu pai,
Ou algum longínquo avó,
A quem um poeta sai.
Será também o Deus da infância
E a árvore sagrada
De frutos proibidos,
Na fragrância
Com que rasguei meus vestidos
E não retirei os ninhos...

Enchi de rosas a terra
E levo nas mãos espinhos.

Afonso Duarte

03/03/2008

BORRAS DE IMPÉRIO IV

Nubar Alexanian

Portugal é feito dos que partem
e dos que ficam. Mas estes
numa inveja danada por aqueles terem
sido capazes de partir, imaginam-lhes a vida
a série de triunfos sonhados por eles mesmos
nas horas de descrerem da mesquinhez em que triunfam
todos os dias. E raivosamente
escondem a frustração nos clamores
da injustiça por os outros lá não estarem
(como eles estão), do mesmo passo
que se ocupam afanosamente em suprimi-los
(não vão eles ser tão tolos –
- a ponto de voltarem).

8/6/1971

Jorge de Sena.
.
[In “Poesia III” – “Exorcismos - 1972” – selecção de poemas resultante da leitura de Julho de 2007 em Cuba. (35).

BORRAS DE IMPÉRIO III

Nubar Alexanian

Pergunto-me a mim mesmo como foi possível:
ou os impérios gastam o seu povo até que ele seja
uma raça agachada, mesquinha e traiçoeira,
ou é com gente dessa que os impérios se fazem,
já que nada glorioso se constrói humanamente
sem 10% de heróis e 90% de assassinos.

Que coisa fedorenta a glória, sobretudo
enquanto não passam séculos e só ruínas
fiquem – onde nem o pó dos mortos
ainda cheire mal.

Jorge de Sena.
.
[In “Poesia III” – “Exorcismos - 1972” – selecção de poemas resultante da leitura de Julho de 2007 em Cuba. (34).