21/07/2010

"Glosa à chegada de Godot" (excerto)


Do que não desespero é muito pouco
fugaz e breve e, sem que se repita,
de não se repetir, retorna sempre.

.....

É desespero tudo, mas repete-se
tão sem se repetir, tão sempre de outros,
tão noutros e com outros que esperamos
o mais que ainda virá. Às vezes nada.
O Sim. O Não. Um simples hesitar.
Às vezes muito pouco. O pouco. O muito.
O desespero é fácil tal como esperar.

"Glosa à chegada de Godot" (1959), in Post-Sriptum

Jorge de Sena

17/07/2010

ANIVERSÁRIO


Estou assim cansado
ao lado de meus pais mortos
libertado

Cercado de dores mansas
ouvindo ao perto o rugir
das lanças

Mortificado por uma nódoa
assaz mesquinha
insólita

Lendo poetas de todos os tempos
desalinhados
em suas linhas

Estou assim cansado
procurando-me na perdição
de ser achado

Lisboa, 28 de Abril de 2003

14/07/2010

Não me esqueço de ti ...


Não me esqueço de ti. Tanto tempo passou
e eu aqui esperando em silêncio.
Não me esqueço de todos os que me desejaram
e não pressenti.
Esquecer o que não se conheceu não é normal
normal é esquecer o que se conheceu e nos faz sofrer.

Deixei passar o tempo? Não foi esquecimento
foi falta de lembrança.
Pode ser essa a minha esperança.
Palavra maldita para os poetas.
Pasolini transformou-a numa palavra ausente
mas a esperança ainda espreita por uma frincha aberta no presente.

Vivo das vozes que me ouvem
mesmo quando duvido que me oiçam.
E deixo no vazio o apelo de palavras que agonizam.
Claro que não me serve de consolo o silêncio eterno.
Pode ser que me responda uma voz qualquer
mesmo que não seja aquela por cuja resposta desespero.

E assim passo o dia-a-dia na procura de quem me responda,
uma resposta audível, brutal ou segredada,
tanto dá mas que me faça companhia.
Para que se possa tornar ausente preciso que se apresente
e que vozes livres clamem:
ausente, ausente, ausente…

Por fim ficarei silente no sítio de onde nunca parti
mas não me esqueço de ti.

Lisboa, 8 de Setembro de 2003

10/07/2010

ESPERO


O cais está deserto. Após uma noite agitada as águas do rio batidas pelo
vento
salpicam o cenário inventado para o difícil encontro a sós que não foi
mais
que o pretexto para te ver fugazmente e sentir o sorriso que a teus lábios
aflora
quando me olhas desde o primeiro dia que me viste e neles notei o leve
entreabrir
da tua pele ao contacto do meu desejo e te toquei incendiando o meu
olhar
ao encontro do teu olhar e nele vi a réplica do beijo que  nunca se 
consumou.
Mais nada do que um adeus? Ou assim como um jogo de adiar a espera
do dia
em que num lugar mágico como no Amarcord de Felini nos abracemos e
nossos
corpos se toquem e eu grite, não me interessa o silêncio que vai tingir de
rubor
o teu rosto, sentindo tua língua a falar na minha boca no momento
fugaz do beijo
que se toma de um trago como o gin ou o fumo das cigarrilhas que
o vento fumou.

Espero
sem desesperar de te sentir desejar-me ou ao menos desejares que eu te
deseje
assim intensamente como quando respondes aos meus apelos e eu me
encho
de esperança ou quando decides esquecer um encontro por não te
apetecer sorrir
com o sorriso de te fazeres sentir agradável, insinuante e virgem como
eu gosto
de me sentir desejado, em eterno falso climax, beijando-te a face no
beijo da despedida
os meus lábios sorvendo o sabor doce de ti através da tua pele
maquilhada arrependido
de não ter jogado no teu corpo o jogo do sexo que tu adias para tornar
mais intensa
a consumação do meu desejo que por gozo invento e tu subtilmente
sempre desejaste.

Lisboa, 5 de Setembro de 2003

06/07/2010

DIFÍCIL PARTILHA


Dói às vezes partilhar o comum dos gestos
da vida e omitir a sua parte nova e agreste,
julgando no dia claro deste Janeiro quente
e seco os passos de viver assim docemente

Crispa a pele suster no corpo o vento em riste
aceitar o cansaço do ventre a olhar o já visto,
receando de nós a própria dor do tempo carregado
para dela nos desfazermos amando o corpo amado

Mesmo que surja uma palavra a mais ou a menos
temo o gemido que leio na memória omissa,
que cor têm os cabelos ondeando no beiral
do tempo quando se abrem os braços e se grita?

Soltemos o nosso passo à desfilada
prendamos o braço ao braço que abraçamos,
experimentemos ouvir as horas na torre
e o esvoaçar da cegonha que observamos

Num golpe de olhar ouçamos os pássaros no berço
da noite e sigamos a linha quebrada do remo fendendo
a ria e os pontos mortiços das luzes no alto da colina

A respiração sustem-se no momento do passo dado
e já nada nos segue a não ser o nosso próprio riso
eco repetido no chão duro e cego da verdade

Lisboa, 21 de Janeiro de 1981

(Transcrição da versão original manuscrita no “livro de recados”)