10/07/2009

TORGA VISTO POR SENA (um episódio)


A propósito desta magnífica posta do Pedro Rolo Duarte ficou a bailar-me na memória uma leitura recente, muito interessante, e pouco simpática, na qual Jorge de Sena se refere a Torga. Pode ser lida nos “Diários” de Sena, no dia 24 de Fevereiro de 1954. Reza assim:

“Encontrei-me com o Guilherme Filipe, para ele me pagar a palestra de ontem. Conversámos um pouco com o Casais que depois saiu. Perguntei-lhe então pela mulher, que sei pior do juízo. Abriu-se então. A última crise começou nas vésperas da partida para o “Cruzeiro dos três continentes” (aquele cruzeiro em que certos excursionistas, segundo me contou o Bordalo, julgaram que as ruínas da Acrópole eram dos terramotos recentes … das ilhas gregas …). Numa crise de dinheiro o Guilherme vendeu uns quadros de que gostava muito, sem que ela, desgostosa por essa solução quando ele não tinha outra, dissesse uma palavra. Chega o Torga, o grande raiano dos arrabaldes de Vila Real de Trás-os-Montes, com um amigo. Também ia ao cruzeiro. E, com um gesto indicativo da memória aquilina que se “deve” supor que ele tem, pergunta: - Falta ali um quadro. Onde está aquele quadro de que eu gosto tanto? - Olhe, respondera o Filipe, precisei de dinheiro e vendi-o. – E por quanto? – Por 3 contos. – E a senhora consentiu? – perguntou o Torga à mulher do Filipe. E este, logo: - Não só consentiu, como não me disse ainda uma palavra a esse respeito. E o Torga, magnífico e magnânimo, abraçando o Filipe: - Ah que você ainda é mais desgraçado do que eu supunha. – E levantou-se para sair, depois de lamentar o mau agouro com que iniciara o “seu” cruzeiro e o não poder dar ele, em vez de ir na viagem, o dinheiro que o Filipe precisara … agora … - Então não janta? – perguntava triste. – Não, minha Senhora, não, que o que acontece aos meus amigos é como se me acontecesse a mim. – E durante a viagem fez sentir à senhora quanto era indigna esposa do pintor (coitado!) G. Filipe. Que grandecíssimo filho … ainda por cima sem sombra de delicadeza moral." (…)

Sem comentários: