28/09/2007

FALA DO DELEGADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Posted by PicasaTom Chambers

(Homenagem a Kafka)

…Mas, meus senhores, nenhum de nós pensa.
Conquanto a enormidade seja imensa
deste acto imundo que nos é imposto
a juízo justo, e que, no vosso rosto,
é sombra, ansiedade, horror do mal
que faz tremer o juiz imparcial,
equânime, que existe em cada cidadão
de honesta vida e puro coração,
esse impoluto julgador que somos,
nenhum de nós, senhores, se apoia em tomos
de ponderosa ciência do Direito
para julgar o mal que assim foi feito.
Falando francamente, não sabemos
como aplicar ao caso nós devemos
as regras e os castigos: a extensão
do crime escapa-nos. E a multidão
de provas, testemunhos, e de indícios,
à custa de tão grandes sacrifícios
aqui trazida, em nada nos adianta
ao conhecer exacto, porque tanta
minúcia probatória nos afasta
do nó, da essência. E a memória casta
com que nós recorramos à experiência
de cada um, tão limitada, vence-a
a própria mansidão da nossa vida
em tão calmas tarefas repartida.
Não que eu proponha a absolvição do réu,
nem que, sem forças pra rasgar o véu
que nos oculta a realidade crua,
nos proponhamos nós a que à verdade nua
se oponha em juízo a improcedência. Não.
É dever nosso não largar da mão
tão importante causa. Suspendamos
a nossa decisão. E resguardamos,
se a tal prudência nos levar o voto
que em vossos olhos eu direi que noto,
ao mesmo tempo o tribunal e o povo
contra os efeitos do elemento novo
que, em nosso seio, seja introduzido
pela malícia de um qualquer partido.
Nós somos, meus senhores, alguém que está
acima dessas lutas. E não há,
neste areópago de velhos sábios,
apesar do sorriso em vossos lábios
em que piedade e força se consomem,
ninguém que queira liquidar um homem
que a muitos títulos nos é nefasto.
Não é por ele que eu palavras gasto
e a vossa paciência. Mas por nós.
Nem liberdade, nem prisão. Uma voz
nunca foi coisa de temer. Atentai
nesta verdade, meus senhores: que nada
pode escapar-nos, coisa alguma, nada.
E num claro gesto de que a estima
pelo bem-estar social é o que me anima,
requeiro que nessa acta fique escrito
que não falei. É tudo. Tenho dito.

10/6/1961

Jorge de Sena
.
[In “Poesia III” – “Brasil” – selecção de poemas resultante da leitura de Julho de 2007 em Cuba. (10)]

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